quarta-feira, 9 de abril de 2008

GENOCÍDIO CULTURAL

O blog Leitura Franca publica na íntegra o artigo do embaixador cubano no Iraque na época da invasão deste país, Ernesto Gómes Abascal*, em que relata os crimes cometidos contra o patrimônio cultural iraquiano, após a queda de Bagdá, em 9 de abril de 2003.

Este artigo foi publicado no início deste mês pela revista cubana La Jiribilla, e foi extraído do site Portal Vermelho (www.vermelho.org.br).

GENOCÍDO CULTURAL

"Domingo, 13 de abril de 2003 tinham cessado os combates em Bagdá, ainda que de quando em vez se ouvissem explosões e tiros isolados, e na obscuridade da noite do terraço da nossa embaixada, ponto de observação escolhido a partir da ocupação da cidade pelas tropas estadunidenses, víamos os incêndios que contrastavam com a total falta de energia eléctrica.


Seriam cerca das 21 horas, quando no refúgio que tínhamos preparado com um metro de profundidade no pátio da embaixada em Bagdá, tocou o telefone via satélite com que mantínhamos contacto com Cuba e outros locais. Quando atendemos, uma voz respondeu-nos: "um momento, vai-lhe falar o Comandante".


Desde o início dos criminosos ataques estadunidenses estávamos a receber estas chamadas que, além de mostrarem preocupação pela nossa situação e nos perguntarem detalhes tão inesperados como o que tínhamos comido ao café da manhã nesse dia, nos crivavam de perguntas sobre a situação militar, o que observávamos nas nossas passagens pela bombardeada cidade, as nossas previsões sobre possíveis desenlaces, etc. Naturalmente, preparavamo-nos antecipadamente para tais interrogatórios, ainda que por muito que o fizéssemos, sempre nos perguntava qualquer coisa que não tínhamos previsto.


Esse dia 13 (e eu não acredito em superstições) foi um deles. Estava reunido em Havana com representantes do setor cultural e ao que parece como tinha já feito em anteriores ocasiões quando conseguia falar para nós, alargava a participação — através da amplificação do som — a todos os presentes na reunião. Com a sua grande sensibilidade, Fidel estava preocupado com as notícias que chegavam sobre a destruição e o saque de importantes centros culturais e históricos, e as suas perguntas eram dirigidas para esse tema, apesar de nós quase não termos informação sobre isso. Foi no dia seguinte, quando demos as nossas voltas pela cidade que pudemos comprovar, se bem que de forma limitada, a dimensão do desastre, ao ver incendiados os o moderno Teatro Nacional no centro da cidade, a Biblioteca Nacional, a Casa da Sabedoria, o Museu Nacional de Artes…


O inventário mais detalhado feito depois por especialistas especifica a verdadeira magnitude da tragédia e faz-nos refletir sobre as razões deste genocídio cultural:


• Foram queimados ou destruídos mais de um milhão de livros na Biblioteca Nacional, incluindo textos e originais de incalculável valor como as Mil e Uma Noites Árabes, Tratados Matemáticos de Omar Khayyan, Tratados filosóficos de Avicena e outras obras de sábios criadores como Avenroes, al Kindi e al Faribi. Documentos básicos da história da Civilização, a origem da cultura e do homem. Na Mesopotâmia, que significa "terra entre dois rios", está Kurna onde, de acordo com as lendas bíblicas, esteve o paraíso terrestre; de Ur, cidade da Caldéia, partiu Abraão, patriarca das religiões monoteístas; Em Mosul está a de Noé.


• Num piso superior do edifício da Biblioteca, ardeu o Arquivo Nacional e com ele boa parte da memória do país.


• Do Museu Arqueológico de Bagdá foram roubados mais de 15 mil objetos de valor, testemunhos únicos.


• A Biblioteca Corânica foi queimada, transformando em cinzas documentos de inestimável valor religioso.

Os bombardeios nos dias anteriores à ocupação já tinham destruído ou danificado locais de grande valor histórico que são patrimônio da humanidade, como as ruínas da Babilônia, o edifício da Universidade de Mustansiriya, etc. Esse foi, apenas, o início da tragédia.


Depois, a partir da entrada dos ocupantes em Bagdá, viria o pior. Sob o olhar complacente dos invasores e violando as disposições que os obrigavam a proteger o patrimônio cultural do país ocupado, iniciou-se o roubo, o saque e um incêndio generalizado, que provocou, talvez, a maior destruição cultural da história. Houlagou, o bisneto de Gengis Khan fez uma coisa parecida em 1258, quando destruiu Bagdá e lançou uma tal quantidade de livros nas águas do Tibre, que estas ficaram negras pela quantidade de tinta e, dizia-se, podia atravessar-se o rio caminhando sobre elas… O mongol teria sentido inveja ante o espetáculo dantesco de agora.


Mas não se ficou por aqui. Hoje, de acordo com estimativas dos organismos especializados das Nações Unidas, 84% das Instituições de Educação Superior foram destruídas ou saqueadas. Desde o início da guerra, 825 docentes universitários foram assassinados e o número cresce todos os meses. Centenas de profissionais tiveram de fugir para outros países e não é pequeno o número dos desaparecidos.


Só no passado mês de Janeiro, foram assassinados Munther Murjej Rahdi, decano da Faculdade de Odontologia da Universidade de Bagdá, Aziz Sulaiman e Jalil Ibrahim A. al-Naimi, professores da Universidade de Mosul. Esquadrões da Morte que obedecem aos EUA e Israel parecem estar por trás destes crimes.


Calcula-se que 10 mil estações arqueológicas foram saqueadas em todo o território iraquiano.


Até à primeira guerra do Golfo, o Iraque era o país com maior potencial técnico e econômico da região árabe e tinha alcançado assinalável desenvolvimento. O seu sistema educativo era o mais adiantado, o de nível mais elevado. Caracterizava-se pelo seu laicismo e pela ausência de fanatismo. As suas reservas de petróleo e gás colocavam-no em segundo lugar mundial.


Tudo isto o converteu no centro de interesse e da cobiça da pandilha neofascista e sionista que predomina no governo de Washington, que o viram como a maior e mais importante potencial ameaça para os seus interesses hegemonistas no Oriente Médio e como uma presa muito apetecível. A guerra foi concebida não apenas como meio de ocupação e dominação, mas também como uma acção premeditada para destruir a cultura nacional, apagar a sua identidade e o seu patriotismo, erradicar a memória histórica e liquidar as instituições que lhe serviam de suporte. Os fatos traduzem também uma importante quota de ódio aos valores islâmicos e, apagando a cultura também pretendem apagar o futuro dos iraquianos. Quiseram dar um castigo exemplar e, mesmo que não possam dominar o povo iraquiano, persistirão no objetivo de o dividir, de o destruir. Veremos se o conseguem."


*Diplomata, embaixador de Cuba em Bagdá durante a invasão e ocupação militar do Iraque pelas tropas dos EUA e Reino Unido em 2003.

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